pinceladas vivas

um blog mantido por José Rogério da Apresentação

Tuesday, February 14, 2006

Pinceladas Vivas - 4

Contrastes e contradições

Os meus 2 artigos anteriores pretendem ser uma viagem fresca e agradável ao interior mais profundo da alma do povo brasileiro. Por isso mesmo, encerram contrastes profundos. E contradições gritantes.

Nação imensa, prenhe de riquezas sem fim, país cortado, de norte a sul e de leste a oeste, por maravilhas naturais de porte espectacular, semeado de cachoeiras altas e profundas, rios gigantescos de percursos sinuosos que serpenteiam por entre matas densas, quilómetros contínuos de areais de águas azuis e cristalinas, florestas e matas escuras alimentando uma miríade de animais selvagens e insectos, centenas e centenas de pequenas ilhas espraiando-se sobre um mar azul de corais, país de saveiros, de amantes ao luar nos cais, de cachaça e feijão preto, de Iemanjá e das mães de santo e dos candomblés, de povo simples de muitas facetas e costumes, do Carnaval e das escolas de samba, da alegria franca de espuma natural, mas também um país rico de contrastes sociais, de violência e miséria e de baixa cultura.

Nos extractos populacionais, é usual encontrar, em contraponto a um núcleo pequeno de pessoas muito ricas (senhores de ilhas, coronéis do cacau, donos das grandes casas de crédito e cadeias de televisão, governantes, deputados e outros políticos corruptos, artistas, jogadores e automobilistas bem sucedidos, proprietários de grandes mansões e palacetes, ….) uma imensa prole, de muitos milhões de seres humanos, perfeitamente à deriva, sem casa nem beira, moradores das favelas e dos bairros pobres, com cheiro de peixe misturado de suor e catinga, de baixos salários ou não ganhando nada, pisando pé nas calçadas das longas avenidas ou torrando ao sol nas mil e uma belas praias, dorsos nus de calções rotos sobre pés descalços ou de chinelas pobres, comendo ao abrigo das esmolas sociais ou sobrevivendo à custa dos roubos, da violência e da prostituição.

É destas coisas todas e de muitas outras que Jorge Amado escreve no seu “Teresa Batista”, nos “Pastores da Noite”, na ”Tenda dos Milagres”, nos “Capitães da Areia”, no “A Morte e a Morte de Quincas Berro d´Água”, no “Mar Morto”, na “Gabriela, Cravo e Canela”, na “Tieta do Agreste”, na “Dª Flor e seus 2 maridos”, no “São Jorge dos Ilhéus”, “No Sumiço da Santa”, no “Farda, Fardão, Camisola de Dormir” e em toda a sua restante imensa bibliografia. A sua pena viva de grande bardo regista, como poucos, estes contrastes profundos e estas gritantes contradições, viajando como ninguém ao interior dos profundos sentimentos, práticas e costumes das gentes simples do Brasil.

Revisita à “Tocaia Grande”

Profundo apaixonado da obra de Jorge Amado, desde rapaz com meus dez anitos, penso que terá sido daí que o meu cordão umbilical ficou ligado ao Brasil. A primeira visita ao Rio de Janeiro, há vários anos atrás, fortaleceu ainda mais essa minha atracção e enlevo.

Houve, no entanto, de entre a vasta colecção de livros deste autor, um que me tocou com grande intensidade, que me ajudou a sentir com grande clareza os traços íntimos da populaça simples e generosa que pisa as terras de Vera Cruz, desde o interior do sertão, do mato grosso, da mata baiana ou da bacia amazónica, às terras altas e até aos confins do litoral deste grande território latino e sul-americano, encostado e fazendo fronteira com quase todos os grandes países da América Latina, como Paraguai, Uruguai, Venezuela, Argentina, Colômbia, Bolívia e Peru. Refiro-me ao “Tocaia Grande”. Ao vê-lo nos escaparates duma livraria, numa movimentada rua de Lisboa, não resisti à tentação: - comprei-o e reli-o, dum só fôlego, revivendo com ele em revisitas ao meu imaginário de frescos brasileiros, situado na minha memória dos anos 80.

“Tocaia Grande, a Face Obscura”, é, quanto a mim, uma das obras mais conseguidas deste grande escritor do nosso tempo. Depois de “Gabriela”, terá sido o que mais conseguiu impregnar, na alma e no sentir dos leitores, o viver das gentes simples e generosas. Conta a história, desde o momento da fundação de Tocaia Grande, hoje um burgo, algures no interior da mata baiana, elevado a cidade, conhecido por Irisópolis, na qual imperou o dinamismo de personagens, como os Andrade (pai e filho), o coronel Prudêncio de Aguiar, o Dr Inácio Pereira e a imensa saga do Capitão Natário da Fonseca, a principal personagem deste livro.

Este povoado constituiu-se inicialmente como um lugarejo, “numa época em que a honra precedia a lei e a coragem vinha antes do poder”, sendo, para o Capitão Natário, um paraíso e para outros, “um valhacouto, reino da Luxúria, danação de Satanás”. Nas 452 páginas da sua 3ª Edição, assistimos ao relato apaixonante da formação deste lugar, no início do século 20, quando os “frutos dourados dos cacaueiros” começavam a fazer história no interior do sertão brasileiro.
“Antes de existir qualquer casa, cavou-se o cemitério ao sopé da colina, na margem esquerda do rio. (…) Apesar do temporal (…), alguns urubus (…) sobrevoaram os homens (…) no transporte dos corpos e na abertura das covas. – Depressa, antes que a fedentina aumente!.” É assim que toda a história começa, desenvolvendo o autor “um vasto mural de caboclas, jagunços, coronéis e capitães”, para “descobrir e revelar a face obscura (…) daquela que foi varrida dos compêndios da história por infame e degradante.” O escritor, no livro, diz ainda que “ quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado”.
“ De mato cerrado a cemitério de emboscada, de pouso de tropeiros e arruado de prostitutas, de terra de perdição e casa de Satã a povoado de bons modos”, a imensa história contada por Jorge Amado sobre Tocaia Grande, esse povoado que hoje é cidade de Irisópolis, constitui um livro inolvidável que recomendo a todos os leitores, interessados em conhecer a história sociológica e a etnologia do Brasil.

Passeios maravilhosos

Ainda sobre a história desta minha última visita a terras do Rio de Janeiro, naquele Novembro de 2002, vos contarei, no próximo artigo, a fechar este ciclo sobre o Brasil, de como foram os passeios maravilhosos (bem baratos e apetitosos ….) que dei.

José Rogério da Apresentação
Original escrito em: Ponta Delgada, 30.10.2003
Actualizado em: 14.02.2006

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