Pinceladas Vivas - 3
Rodízio carioca ou talvez não
Não foi o “Mauá”, que esse só o adquiri ao 2º dia da minha estadia no Rio, pelas mãos do meu querido amigo Paulo Raimundo, ele próprio um jornalista, um “designer” culto das coisas maravilhosas, simples e complexas, do seu Brasil. Nascido no Paraná, há quase 50 anos, singrou, passando por lides em aeroportos e tratando por tu as coisas dos aviões, para as terras cariocas, fixando-se na Glória, em um quarto andar dum prédio já não muito moderno de fronte para um dos principais hospitais particulares do Rio de Janeiro. Nesta cidade imensa, ruidosa e cheia de contrastes gritantes, conheceu, nas suas muitas caminhadas desde a Praia do Flamengo até à Urca, ali aninhada ao pé do Morro do Pão do Açúcar, a Ana, professora e depois assistente social em várias importantes favelas. Nascida de pais portugueses, o pai de Braga e a mãe de S. Miguel, há muito emigrados nestas terras de Vera Cruz, esta descendente da Família Vaz casou com o Paulo, o tal Raimundo, jornalista “designer” preocupado com as coisas incríveis do seu Brasil amado, lindo de morrer, mas ao mesmo tempo cheio de desejos de emigrar, algures para Portugal, para o Canadá, sei lá, para qualquer lado, onde a vida faça mais sentido e a esperança encha mais os bolsos, criando um futuro risonho para o bebé, seu rebento que viu a luz do dia nos primeiros de Maio deste ano.
Inconformado com a vida, o bom do Raimundo identifica-se bastante com Mauá, o tal Empresário do Império, um homem de negócios que começou do nada, como simples moço de recados e depois caixeiro numa firma comercial, ali para as bandas da Rua do Ouvidor, descendente ainda de pais açorianos, nascido e criado nas terras do Rio Grande do Sul, e que a pulso, com organização e método, força de vontade imensa e uma inteligência esclarecida, conseguiu ser o principal Empresário do Brasil, dono de múltiplas empresas, companhias ferroviárias e de transporte marítimo e terrestre, de iluminação, estaleiros navais e fundições, banqueiro por excelência. Pela pena de Jorge Caldeira, a vida de Irineu Evangelista de Sousa, barão e visconde de Mauá, é descrita de forma exemplar ao longo das 557 páginas do seu livro “Mauá, Empresário do Império”. Figura incompreendida na sua época, sujeito a um rodopio de invejas e cobiças dos parceiros do seu tempo, banqueiros, empresários agrícolas esclavagistas, políticos, chefes de governo, ministros e parlamentares, Mauá chegou a deter uma imensa fortuna, que se constituiu como uma boa parte da riqueza brasileira, uruguaia e argentina, com acções nos principais bancos ingleses e casas de crédito europeias. Apoiado pelo seu grande amigo, o usurário escocês Richard Carruthers, Irineu aprendeu depressa e bem todas as práticas contabilísticas mais avançadas da sua época, ao tempo do Rei D. João VI, fugido de Portugal com a sua corte, por via das invasões napoleónicas, e dos Imperadores Pedro I e II do Brasil (e também Reis Pedro IV e V de Portugal). A estação televisiva “Canal do Brasil” passou recentemente esta obra em filme.
Calcorreando, acima e abaixo, as longas artérias do Centro do Rio, desde a Rio Branco até à Glória, Morro de Santa Teresa e, atravessando de barco o rio, do outro lado Niterói, eu e o Paulo corremos muitos dos trilhos pisados, séculos atrás, pelo Barão Irineu, e deu-me a conhecer tintim por tintim, muitos dos sítios onde ele viveu. Hei-de lá voltar para conhecer também Petróplis e Teresópolis.
A faceta incompreendida do Barão de Mauá é ainda hoje imagem de marca indelével do Brasil actual, que apaga e cilindra os grandes homens, país de profundos contrastes e contradições, que possui riquezas incalculáveis mas que é, em simultâneo, uma nação cuja maioria é pobre, muitos no limiar da miséria, a par de uns tantos, muito poucos, extremamente ricos. País que é devorado por um mar imenso de desigualdades e injustiças sociais, pulverizado por uma violência sem limites. Porquê?, porque se calhar os valores passam uns atrás dos outros e não são aproveitados.
Neste rodízio carioca, ou talvez não, que permitiu que eu lesse a outra luz esta saga do Barão de Mauá, entrei também num alfarrabista, quando andava à procura dumas estatuetas religiosas, nas lojas de Imagens e Artes Sacras das ruas apinhadíssimas de gente, em pleno Centro do Rio de Janeiro, essa cidade que era há poucos séculos atrás cortada por vários morros, que forram arrasados e que hoje são pontões roubados ao mar na zona do Flamengo e Botafogo. Conversa puxa conversa com o dono da livraria, um poeta cujo nome já não me lembro, ele ofereceu-me um livro velho, amarelo e comido pelo tempo: “Contos Cariocas”. Da autoria dum tal Arthur Azevedo, exímio contador de contos e historietas, ainda escrito em português-brasileiro do século passado, constitui uma delícia lê-lo, retratando com pinceladas vivas a alma simples do “povão” carioca, alegre desenrascado.
Périplo ao interior da alma brasileira
Naquelas longas dez horas e tal de voo que me conduziram de Lisboa até ao Rio de Janeiro, olhando, horas a fio, a majestade e beleza sem fim do imenso Brasil, através da janela do Airbus da TAP, entre um excelente serviço a bordo e uma simpatia inexcedível das raparigas e rapazes de cabine, fui lendo, devorando, não o “Mauá”, mas a “Teresa Batista cansada de guerra”, do inesquecível e sempre presente Jorge Amado. As 475 páginas da sua 8ª Edição, cuja leitura já concluí na noite da chegada ao Rio, após saltar do Galeão numa corrida frenética até Copacabana, e já hospedado no “Benidorm Palace Hotel” de 4 Estrelas, constituem-se como um mergulho profundo ao interior da alma do povo brasileiro.
Esta Teresa Batista, “moça de cobre, nos seus afazeres e correrias”, é uma das muitas figuras populares criadas pela pena desse grande escritor, num friso de heróis do povo, concebidos no interior do sertão, ao luar nos veleiros ou nos bares de cachaça dos cais desse “território habitado por uma nação de caboclos e pardos, cafuzos, gente de pouca pabulagem e de muito agir…”.
Era o último livro de Jorge Amado que me faltava ler. Sou um apaixonado pelos romances deste escritor, que são também valiosas colectâneas de vocábulos genuínos brasileiros que repousam no íntimo da cultura índia nativa cruzada com as linguagens ou linguísticas dos povos colonizadores que demandaram as terras do Brasil. Este livro, recomendo eu, caros leitores, que o leiam, tal como a restante panóplia de livros deste importante autor do nosso tempo.
José Rogério da Apresentação
Original escrito em: Ponta Delgada, 22.09.2003
José Rogério da Apresentação
Original escrito em: Ponta Delgada, 22.09.2003
Actualizado em: 14.02.2006
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